A Influência da Globalização na Transformação da Sociedade

Milena Demetrio
8 min readAug 20, 2019

Desde o surgimento da manufatura com a Primeira Revolução Industrial, iniciada pela Inglaterra no século XVIII, a sociedade passou por diversas transformações no âmbito dos relacionamentos, da noção de tempo e produtividade, da difusão de informações e das formas de economia (HOBSBAWM, 2003).

Um novo ciclo iniciou-se na sociedade marcando o fim da Idade Média, com novos ideais sociais e de pensamento disseminados principalmente pelo Renascentismo (XIV — XVI), pela Reforma Protestante (XVI), pelo Iluminismo (XVII — XVII), e pela Revolução Francesa (XVIII), tais abstrações de pensamento moldaram a forma de como o indivíduo se identificava e também as relações sociais em todas as esferas. A formação do pensamento moderno teve sua gênese no entendimento da sociedade burguesa que utilizou os pilares sociais disponíveis — como a luta contra a monarquia e a economia — para conduzir a maioria em direção ao seu objetivo de desconstrução da forma de poder vigente (SILVA, 2017).

A efetivação deste modelo de pensamento se deu com ajuda do regime de educação, que foi sistematizado para realizar as necessidades do mercado e também, segundo Mészáros (2008), transmitir os valores que favorecem e legitimam os interesses dominantes. Em outras palavras, a educação se tornou uma peça no processo de acumulação de capital ao invés de exercer o papel contra a alienação da sociedade mercantil, fator que poderia promover a emancipação humana. A natureza da educação fica então condicionada ao destino da mão de obra, pois para a manutenção do sistema de capital vigente é necessário que haja a reprodução do sistema ideológico que permite cotidianamente a aceitação das desigualdades sociais e a injustiça social (MÉSZÁROS, 2017).

Para alcançar este nível de aceitação a sociedade passou por várias fases, sendo construída e desconstruída continuamente no que diz respeito à cultura, costumes, pensamento comum, valores, posições políticas e religiosas e padrões de consumo. Esta desconstrução da sociedade não foi um processo isolado, após as revoluções industriais e com o advento da revolução tecnológica a humanidade vem passando por mudanças em sua estrutura social de forma cada vez mais rápida e aparente, deste modo a sociedade teve de aprender a conviver com novas formas de risco que foram gerados pela modernidade (BECK, 2000).

Os riscos que antes agregavam as intempéries climáticas, epidemias e guerras, agora assumem formas múltiplas de inseguranças coletivas, como por exemplo, ataques cybernéticos feitos por hackes que movimentam um extenso comércio do mercado de informações; a ameaça de armas químicas e nucleares; e mudanças climáticas que geraram a questão da ecologia global e do risco de degradação do meio ambiente (BECK, 2000). O processo de reformulação da sociedade é caracterizado por Beck (2000) como a descontextualização da classe industrial e a recontextualização da classe moderna, processo semelhante ao que teria acontecido da sociedade tradicional para a sociedade industrial. Segundo Granovetter (2007), grande parte dos pensadores da tradição utilitarista e da economia clássica parte do pressuposto de que os agentes são compelidos por atitudes racionais e que tem influencia mínima das relações sociais, porém, o autor destaca o problema da imersão (embeddeness) que afirma a necessidade de interpretar o comportamento humano e a resposta das instituições de forma conjunta, como elementos dependentes (GRANOVETTER, 2007).

A racionalidade dos agentes — ou a falta dela — influencia sobremaneira o modo como as relações sociais e de mercado são criadas. A forma como as novas relações são formadas tem raízes em um dos efeitos do avanço da tecnologia: a globalização. Segundo Giddens (2003), o choque do processo de unificação planetária causou tremendas mudanças na cultura e na identidade das sociedades tradicionais. Para o autor a globalização não é apenas um fenômeno de trocas mercantis que vem se desenvolvendo desde o início da civilização, e sim, uma nova forma de revolução que permite o surgimento de diferentes formas de reações globais. Neste sentido a globalização pode ser caracterizada como um fenômeno tecnológico, econômico, político e cultural que é afirmado pela facilidade de acesso à informação em todos os locais do mundo (GIDDENS, 2003).

Porém, a globalização como algo inevitável é algo que Santos (2003) busca deslegitimar. O autor demonstra que o processo de economia global é reversível e que a ideologia de globalização como único caminho é uma fábula disseminada para consagrar este discurso. O processo de globalização seria exclusivamente guiado pelo território do dinheiro e imposto pela tirania da informação que polariza os agentes econômicos e influencia a competição desigual. Esta polarização determinaria a pobreza para os chamados excluídos do sistema, atingidos por técnicas de informação que acentuam as desigualdades por disseminarem ideologias tendenciosas, que alinhadas a educação, prejudicam a capacidade de julgamento e ação (SANTOS, 2003).

A nova sociedade global reconfigurou vários conceitos e parece não ser possível se desvencilhar de sua influencia. Para Escobar (2005), até mesmo o conceito de “lugar” e “pertencimento” tem sido discutido. Apesar de o autor destacar a importância do enraizamento e da conexão com a vida diária, enfatiza que existem correntes de pensamento que classificam a desterritorialização como uma característica inerente a nova forma de sociedade global, fato que demonstra que a dinâmica dos processos globais tomou um rumo inédito na história da humanidade. As facilidades de transporte, a diáspora, as viagens, migrações e as guerras — que geram refugiados — transformaram-se em fatores essenciais para definir a condição de moderno (ESCOBAR, 2005).

Frente a todas estas mudanças estão as pessoas e sua vida cotidiana, seus estudos, trabalho, família e escolhas de consumo. Frequentemente bombardeados pela publicidade e condicionados a ferramentas de marketing, observados por câmeras de segurança, vigiados por dispositivos online, presos dentro de seus próprios enclaves fortificados, sobrevivem dia após dia no meio do caos da modernidade. Sem consciência de classe ou impacto de pequenas ações individuais, a massa de manobra continua a fazer seu papel na engrenagem do sistema linear de consumo, produzindo lixo e fechando os olhos para as ameaças de extinção do meio ambiente.

A teoria clássica e neoclássica de produção mostra-se dia após dia ineficiente para elucidar os conflitos da sociedade de consumo moderna (GEISSDOEFER, 2018). A forma linear de produção prioriza os rendimentos marginais crescentes e cria um modelo insustentável de exploração de recursos naturais e capital humano onde o ciclo de extrair, transformar, produzir, consumir e descartar assume uma curva de crescimento graficamente infinita e não aplicável a realidade (LEITÃO, 2015). A ótica da auto-organização dos mercados e o pressuposto da racionalidade dos agentes faz com que fiquem de fora fatores de grande influencia nos modelos de previsão econômicos, limitando a capacidade de leitura e análise do comportamento da sociedade. É fato que a construção da economia como método científico tenha propiciado o evento de generalização dos modelos, afinal, no caos das relações humanas seria impossível identificar os objetivos da natureza econômica (CARVALHO, 1994).

Devido a estas constatações, economistas contemporâneos buscam novas formas de sistematização da economia, com objetivo de promover o desenvolvimento sustentável e propiciar dignidade para todos os seres humanos. A economia circular é um dos principais argumentos contra o modelo hegemônico traçado no século passado, esta abordagem considera a racionalidade econômica e ambiental como centro de um sistema voltado para a Terra e não para o mercado. O foco da nova abordagem é o desenvolvimento sustentável que busca suprir as necessidades dos mais pobres do mundo e a conscientização do caráter finito dos recursos naturais do planeta (CARVALHO, 1994).

O conceito de economia circular surgiu em 1970, a discussão surgiu em meio a autores como Pearce e Turner (1989), Andersen (2007), Ghisellini et al. (2016), Su et al. (2013) e Boulding (1966). Ao investigar como os recursos naturais influenciam a economia através da produção e consumo — bem como a criação de resíduos — Granovetter (2018) explica que a conclusão dos autores é de que a Terra é um sistema circular de capacidade limitada e que a economia deveria respeitar isso. Segundo o autor, uma das definições mais aceitas de economia circular foi formulada pela Fundação Ellen MacArthur (2012), que introduz a economia circular como um tipo de economia industrial que tem a regeneração e restauração como parte de seu design e trabalha para iniciar e terminar o ciclo de vida dos produtos. A economia circular buscar atender as demandas da sociedade com o mínimo impacto ambiental possível no que diz respeito ao uso de matérias primas e energia, que “[…] pode ser conseguido através de um design duradouro, manutenção, reparação, reutilização, re-manufatura, recondicionamento e reciclagem” (GRANOVETTER, 2018 p. 7).

Novas formas de sistemas econômicos em expansão podem ou não ter vitória frente os antigos sistemas, algo que influencia sobremaneira seu sucesso ou fracasso é o estilo de vida de uma sociedade. O individualismo gerado pela sociedade global afeta o desenvolvimento social e humano dos indivíduos e só pode ser superado pela mentalidade de cooperação e dependência mútua dos agentes. A dignidade como desenvolvimento é um argumento criado pelo filósofo finlandês Pekka Himanen (2014), que com base na teoria da justiça de Rawls (1971) e na teoria de desenvolvimento como liberdade de Sem (1980), para o autor a dignidade — princípio do valor do ser, simplesmente pelo fato de ser humano — é o princípio que norteia todos os direitos fundamentais da sociedade e principal agente de desenvolvimento (HIMANEN, 2014).

Diante do exposto pode-se compreender que a modernização da sociedade deve acontecer em todos os âmbitos, não apenas no que diz respeito ao crescimento econômico. A modernização reflexiva de Beck (2000) pode ser um dos caminhos para a gênese de um novo pensamento social, um pensamento que assuma os riscos da sociedade global, abrace-os e transforme-os em uma nova forma de globalização, como sugere Santos (2010), em uma globalização de consciência universal. As alternativas econômicas viáveis para a transformação do sistema são muitas e vem sendo discutidas desde os primeiros sinais de que a natureza não seria capaz de gerar recursos infinitos, para o debate deste artigo destacam-se a Economia Circular e a Economia Donut (RAWORTH, 2019) como alternativas ao modelo de crescimento a qualquer custo.

Referências:

BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, A.; BECK, U.; SCOTT, L. (Orgs.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP. 1997. pp. 11–72.

CARVALHO, Fernando J. Cardim de. Sobre ordem, incerteza e caos em economia. Revista brasileira de economia, v. 48, n. 2, p. 179–188, 1994.

ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In: LANDER, Edgardo. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argen􀆟na: Colección Sur Sur, CLACSO. 2005. pp. 133–168

GEISSDOERFER, Mar􀆟n; SAVAGET, Paulo; BOCKEN, Nancy M.P.; HULTINK, Erik Jan. The Circular Economy — A new sustainability paradigm?. Journal of Cleaner Produc_on, v. 143, p. 757–768, 2017.

GIDDENS. Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo por nós. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

GRANOVETTER, Mark. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE-eletrônica, v. 6, n. 1, Art. 9, jan./jun. 2007.

HIMANEN, Pekka. Dignity as Development. In: CASTELLS, Manuel; HIMANEN, Pekka. Reconceptualizing development in the global information age. Oxford Press, 2014. Disponível em: htpps://globaldignity.org/wp-content/uploads/2017/12/Pekka-Himanen-Dignity-as-Development.pdf . Acesso em 19 de agosto de 2019.

HOBSBAWM, E. J. Da Revolução lndustrial lnglesa ao lmperalismo. 2003.

LEITÃO, Alexandra. Economia circular: uma nova filosofia de gestão para o séc. XXI. Portuguese Journal of Finance, Management and Accounting, v. 1, n. 2, 2015.

MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. 2.ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008. (Mundo do Trabalho).

RAWORTH, Kate. Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. 1. ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SILVA, Danne Vieira. Apontamentos histórico-filosóficos sobre as origens e a decadência ideológica nas ciências econômicas. Diretor da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades, p. 152. 2017.

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Milena Demetrio

Brasil. Ciências Econômicas, Unicentro, PR. Mestre e Doutoranda PPGDR, UTFPR. Culture, Development, Feminism, Agriculture and Healthy Eating.