O Contexto da Economia Feminista

Milena Demetrio
9 min readAug 22, 2019

--

Photo by M. B. M. on Unsplash

O processo de exclusão sofrido pelas mulheres ao longo da história foi colocado em evidência acadêmica pelo surgimento das formas de organização social que eclodiram nas décadas de 1960 e 1970. A avalanche de movimentos sociais faria com que antigos paradigmas fossem repensados, influenciando os processos da produção de conhecimento. As profundas diferenças entre homens e mulheres são a razão da existência da teoria feminista, em suas discussões o tema central é a submissão da mulher e a dominação masculina que é explicitamente inerente ao patriarcado (PAIVA, 1997).

O movimento feminista do século XIX, segundo Pinto (2010), buscava a igualdade de direitos civis, políticos e educativos. Os primeiros grupos organizados surgiram na Europa e em seguida nos Estados Unidos. O pensamento feminista vem da corrente filosófica do existencialismo e tem como grandes nomes da época Simone de Beauvoir (1908–1986), Mary Wollstonecraft (1759–1797), e Gertrude Stein (1874–1946). O desejo das mulheres que representavam a gênese do pensamento feminista era um só: o reconhecimento de que as mulheres eram, de fato, seres racionais e que poderiam ser muito mais do que cuidadoras e empregadas domésticas.

O pensamento feminista evolui passando por várias reformulações e desmembrando-se em vertentes que ficaram conhecidas como “ondas”. A Primeira Onda do Feminismo (séculos XIX e XX) é caraterizada pela luta do direito ao voto e ao trabalho, na Segunda Onda do Feminismo (1950–1990) começam os estudos sobre a condição da mulher, e a mais recente, a Terceira Onda do Feminismo é datada a partir dos anos de 1990 até a atualidade, e foi caracterizada pelo empoderamento feminino (PINTO, 2010).

No Brasil, a primeira onda do feminismo foi liderada por Bertha Lutz, cientista de importância que estudou no exterior e trouxe em 1910 o ideal libertário feminista. Lutz lutou pelo direito ao voto e foi uma das fundadoras da Federação Brasileira do Progresso Feminino (1927), desde então o movimento feminista brasileiro vem crescendo e aumenta a efervescência pela conquista de direitos femininos (PINTO, 2010).

Apesar do caminho percorrido em busca da igualdade ser mais longo para as mulheres, autoras como Simone de Beauvoir acreditavam que tal segregação não era algo inato à espécie humana. Em seu livro O Segundo SexoA Experiência Vivida Beauvoir (1967), discorre que até os quatro anos meninos e meninas não têm praticamente nenhuma diferença na forma de ser, esta diferença seria imposta pelo regime onde as famílias estão inseridas.

O “regime” seria o patriarcado, em que os homens, desde pequenos, seriam preparados para assumir o papel de liderança, que para eles seria inato ao sexo masculino. Esta carga de responsabilidade exigiria que o menino tivesse o afastamento dos afagos maternos antes da menina, por exemplo. Mas, em contrapartida, seria recompensado com outros privilégios, que lhe seriam correntes durante toda a vida (BEAUVOIR, 1967).

Ao analisar o poder da supremacia masculina em todos os aspectos da vida pública e privada das famílias, Beauvoir (1967) demonstra que a desigualdade de gênero é um problema intrínseco a formação das sociedades. Assim, a desigualdade de gênero vem sendo perpetuada e afirmada como correta através de vários pilares de influência, como a família, a religião e o pensamento comum da sociedade.

A maioria das mulheres não tem consciência de sua condição de inferioridade, vivem “bem” e acreditam estar desempenhando suas funções, por isso o debate acerca do assunto — com uma perspectiva que não seja do sexo masculino — é necessário e possibilita a politização das mulheres incentivando-as a quebrar as barreiras socialmente impostas ao gênero. A partir da politização das mulheres é possível redefinir as relações entre o público e o privado. Para Biroli (2017) as teorias feministas lançam um novo olhar sobre a divisão sexual do trabalho, a violência doméstica, a diferenciação do controle do Estado sobre os corpos e a noção de liberdade e subordinação aplicada às mulheres.

Sobre a mudança que a politização das mulheres viria a causar, Beauvoir (1967) comenta que:

As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do “eterno feminino”: a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina. (BEAUVOIR, 1967 p. 1).

Nas suas percepções Beauvoir (1967) busca desmistificar a feminilidade, elevando à mulher a condição de ser humano individual que não necessariamente precisa de um homem para se reconhecer como ser. Outras grandes autoras europeias levaram ao debate as questões de desigualdade de gênero na sociedade, porém, quando mulheres europeias falam sobre a dominação do patriarcado este discurso difere da realidade de outras sociedades, principalmente quando se fala de países subdesenvolvidos, onde além da desigualdade de gênero as desigualdades sociais são evidentes. Seguindo a historiografia da mulher latino-americana são percebidas outras formas de dominação desconhecidas das europeias até então, como ressalta Lopes (2017):

O feminismo branco, não raro, tem se posicionado de forma autoritária ao excluir reflexões mais contextualizadas desde as mulheres de um continente como o latino-americano, que são em ampla maioria negras, índias, pobres, e que são lésbicas, de várias religiões… Ademais, uma característica do feminismo branco e hegemônico é sua negação histórica de diálogo com as mulheres negras, indígenas, lésbicas, bem como, com os homens, repercutindo com isso o suposto binarismo natural, biológico, nas relações de poder sociais e históricas de raça, classe, gênero e sexualidade. (LOPES, 2017 p. 122).

As relações históricas de poder demonstram uma luta constante entre o oprimido e o opressor, no processo de colonização das nações é possível classificar estes dois agentes como o colonizador e o colonizado. Na visão do colonizador o colonizado é um ser “selvagem” que precisa ser introduzido às modernas atividades da sociedade da qual o colonizador vem. Esta racialização não permite ver o colonizado como ser humano, mas apenas como um animal, sem alma e sem gênero. Este processo de “coisificação” humana justificou uma série de atrocidades cometidas aos povos nativos, como comenta Lugones (2014):

Só os civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas — como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/ agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês. A imposição dessas categorias dicotômicas ficou entretecida com a historicidade das relações, incluindo as relações íntimas. (LUGONES, 2014 p. 936).

Quando trata de “relações íntimas” Lugones (2014) não se refere somente ao ato sexual, mas também as relações públicas e privadas do cotidiano de uma organização social. É importante comentar que os colonizadores se encontraram com uma sociedade já formada, com suas próprias convenções, leis, costumes, atividades econômicas e religiosas. A exploração capitalista transforma então esta sociedade em selvagens que necessitam ser iniciados nos “bons costumes” da civilização, e da ao colonizador autoridade para decidir o que fazer com os corpos de fêmea e macho que passaram então a dominar (LUGONES, 2014).

Lopes (2017) comenta que desde 1980 o movimento feminista negro iniciou o questionamento de afirmações feitas pelas feministas brancas, por não identificar-se no discurso. A opressão de gênero racializada sofrida pelas mulheres da América Latina foi nomeada por Lugones (2014) como “colonialidade de gênero”, a possibilidade de sua superação seria o Feminismo Decolonial, que iria além do feminismo eurocêntrico. Segundo Kempf e Wedig (2019), o feminismo é uma forma de resistência a opressão sexista colonial, mas o feminismo “branco” oferece certas limitações:

Frente à colonialidade do poder, principalmente no que concerne ao gênero, produziu-se uma série de formas de resistências e de lutas por aqueles que foram submetidos aos processos de opressão. O feminismo pode ser considerado como uma dessas lutas, porém apresenta aspectos limitantes na consideração das pautas das mulheres não brancas, não ocidentais, não burguesas. O feminismo atual se mostra, em grande medida, como descendente da luta pelas demandas da mulher branca, europeia e burguesa, em relação às desigualdades com relação aos homens. Assim, a luta pela emancipação da mulher europeia é a base do feminismo eurocêntrico exportado para a colônia e ainda em voga hoje em dia. Nesse sentido, Lugones (2008, p. 94) faz uma crítica ao movimento feminista, em razão da referência hegemônica ter sido a “libertação feminina”, na qual “mulheres brancas se ocuparam de teorizar o sentido branco de ser mulher, como se todas as mulheres fossem brancas”, não havendo, dessa forma, uma preocupação mais profunda com as demais mulheres: negras, indígenas, lésbicas ou camponesas, por exemplo. (KEMPF; WEDIG, 2019 p. 5).

Devido a isso, a visão decolonial visa entender a hierarquização de gênero e toda sua subjetividade, para fornecer a todas as mulheres materiais que permitam entender sua situação sem se render a ela. Segundo Lugones (2014), diferente da colonização, a colonialidade de gênero permanece na constituição do sistema de poder capitalista mundial da atualidade, sua estrutura de poder baseada no modo de vida europeu — essencialmente patriarcal — constitui uma potente ferramenta de opressão intrínseca a estrutura social moderna (LUGONES, 2014).

Considerando o contexto histórico da mulher na sociedade, percebe-se que dentro das Ciências Econômicas a segregação de gênero também não é diferente. Na tentativa de equalizar a produção acadêmica e fomentar o debate sobre a participação da mulher na economia, uma nova área de pesquisa surge, pautada na crítica feminista sobre à economia capitalista consolidada, se configurando como a Economia Feminista.

Alguns autores afirmam que a economia feminista surge a partir do século XX, e ganha força no final dos anos 90, porém, autores como Carrasco (2006), afirmam que a discussão da questão da desigualdade entre os sexos, a diferenciação de atividades desenvolvidas e sua condição econômica e social, remonta a época do surgimento da economia enquanto disciplina autônoma, pois a principal análise da economia feminista é o trabalho desempenhado pela mulher e seu reconhecimento na sociedade.

O debate da economia feminista abrange todas as esferas de atuação das mulheres — público e privado -, algo que a economia tradicional não considerava até então. O trabalho doméstico e atividades de cuidados a outrem não pertence ao âmbito econômico, pois não se destinam a transações de troca no mercado, tornando-se invisíveis.

Todo tipo de atividade transformadora tradicionalmente realizada por mulheres, ou seja, todos os bens e serviços que são produzidos, realizados e consumidos dentro do espaço familiar, e pelos quais não seja cobrada uma contrapartida financeira, precisamente por este motivo permanecem fora do foco de interesse da economia tradicional. Neste sentido, a perspectiva da economia feminista direciona uma crítica que propõe um olhar estranho à tradição econômica desde o estabelecimento da economia como disciplina científica autônoma no século XVIII. (FERNANDEZ, 2018 p. 560).

A divisão sexual do trabalho é algo inerente a evolução humana, esta dicotomia entre atividades consideradas femininas e masculinas é uma marca da civilização. Porém a carga de trabalho disposta às mulheres fica maior quando elas começam a participar também da esfera pública, realizando atividades remuneradas. O impacto na produção do trabalho doméstico socialmente imposto afetam diretamente as mulheres e não os homens, principalmente quando há necessidade de prestar cuidados a terceiros. Cabe a economia feminista inferir os impactos que estas obrigações e o tempo gasto com as atividades tradicionalmente vistas como “femininas”, geram no mercado de trabalho e no desenvolvimento pessoal das mulheres.

A Economia Feminista visa a mensuração das horas de trabalho dispendidas na chamada “dupla jornada” realizada para a mulher, a fim de incluir no cálculo das variáveis econômicas a importância do trabalho doméstico. O trabalho desenvolvido na escala privada e de cunho reprodutivo é um agente que viabiliza o trabalho desenvolvido na esfera pública, de cunho produtivo. A busca pelo reconhecimento da importância destas atividades e da universalização das tarefas é um dos objetivos da corrente teórica, a ótica feminista do trabalho reprodutivo demonstra sua relevância no desenvolvimento da economia da sociedade.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: experiência vivida. Difusão Europeia do Livro, São Paulo — SP, 1967.

BIROLI, Flávia. Teorias feministas da política, empiria e normatividade. Lua Nova, São Paulo, 102: 173–210, 2017.

CARRASCO, Cristina. Introdução: Para uma economia feminista. SOS-Sempreviva Organização Feminista, 2005.

FARIA, Nalu. Economia feminista e agenda de luta das mulheres no meio rural. Estatísticas Rurais e a Economia Feminista: Um Olhar Sobre o Trabalho Das Mulheres. MDA, p. 11–28, Brasília — DF, 2009.

FERNANDEZ, Brena Paula Magno et al. Economia feminista: metodologias, problemas de pesquisa e propostas teóricas em prol da igualdade de gêneros. Revista de Economia Política, vol. 38, nº 3 (152), pp. 559–583, 2018.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595–609, 2007.

KEMPF, Renata Borges; WEDIG, Josiane Carine. Processos de resistência de mulheres camponesas: olhares pela perspectiva decolonial. Mundo Agrário, vol. 20, n° 43, e111. Mundo Agrário. Buenos Aires — AR, 2019.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 935–952, 2014.

PAIVA, Mirian Santos. Teoria feminista: o desafio de tornar-se um paradigma. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 50, n. 4, p. 517–24, 1997.

PINTO, Celi Regina Jardim. Feminismo, História e Poder. Curitiba: Revista de Sociologia e Política / UFPR. V. 18, Nº 36: 15–23. JUN. 2010.

--

--

Milena Demetrio
Milena Demetrio

Written by Milena Demetrio

Brasil. Ciências Econômicas, Unicentro, PR. Mestre e Doutoranda PPGDR, UTFPR. Culture, Development, Feminism, Agriculture and Healthy Eating.

No responses yet